terça-feira, 24 de agosto de 2010

Bacalhau à moda do Eça

- "Dis-moi ce que tu manges, je te dirai ce que tu es"
Brillat-Savarin

“Os meus romances, no fundo, são franceses, como eu sou, em quase tudo, um francês — exceto num certo fundo sincero de tristeza lírica que é uma característica portuguesa, num gosto depravado pelo fadinho, e no justo amor pelo bacalhau de cebolada!”, disse Eça de Queiros em carta a Oliveira Martins.


Quanto ao fado, perdoe o Eça, não me faz o gosto. Pelo bacalhau sim, ou capaz de empenhar a fama de bom gastrólogo e de gourmet requintado e mesmo não sendo português, depois de boa posta de gadus morhua, único e verdadeiro bacalhau, acompanhado de bom vinho, muitas vezes me ponho também em tristeza lírica.

Eça de Queiros, narram os estudiosos de sua vida, também gostava do bacalhau com batatas a murro. Bacalhau bem alto que depois de dessalgado deve ser enxugado e logo assado nas brasas. Ao lume, em tacho com muito azeite, dentes de alho e pimenta. Deixa-se levantar a fervura. À medida que o bacalhau assa, faz-se em lascas e é mergulhado no azeite. Serve-se de imediato com batatas assadas com a pele, partidas a murro.

As batatas a murro são passadas por sal grosso e levadas a brasa para assar. A meia assadura dá-se-lhes um murro para esborrachá-las um pouco. Salpicadas com mais sal grosso deixa-se que acabem de assar. Então, é saboreá-las com o bacalhau e para fazer o gosto do escritor, abrir um Pera Manca, vinho português da melhor catadura que, segundo consta em alguns alfarrábios, já era produzido à época de Pedro Álvares Cabral e o acompanhou em sua viagem ao Brasil. Se é verdade, foi o vinho da primeira missa e da primeira bebedeira civilizada dos nativos, observa o Dico Kremer.

Bravo Eça. Mas o bacalhau que mais aprecio é outro, com bastante azeite, batatas e cebolas pequenas. Receita simples. De fácil preparo. É forrar uma panela pesada com batatas pequenas descascadas. Dispor as postas de bacalhau dessalgado. Entre as postas, cabeças inteiras de alho com as cascas. Por cima, cebolas pequenas. Finalmente azeite até quase cobrir as cebolas. Leve a fogo brandíssimo e cozinhe até amolecer as cebolas.

Para uma boa posta de bacalhau, preparada com simplicidade para ressaltar o seu sabor, não há dúvidas de que um branco encorpado é ótima opção.

Então, é preparar-se para comer. Saboreá-lo com os olhos ligeiramente cerrados e as pupilas dilatadas, atentas, apaixonadas. Nada que desvie a atenção ou prejudique o humor. Sigamos a recomendação de Fradique Mendes, o sofisticado personagem de Eça de Queiroz, que numa taverna da Mouraria, diante de um prato de bacalhau com pimentos e grão-de-bico, ao ouvir o nome de Renan, que alguém lançara, protestou com paixão:

― Nada de ideias! Deixem-me saborear esta bacalhoada em perfeita inocência de espírito, como no tempo do senhor Dom João V.

Eliminados os debates e os arroubos, escolha o vinho. O bacalhau é exigente, controverso, mas aceita a companhia de muitos vinhos brancos, tintos e rosados bem escolhidos, nos diz o Luiz Carlos Zanoni, com elegância para não ferir velhos hábitos lusitanos, e ensina a apreciar um bom branco encorpado, de preferência com passagem pela madeira, para acompanhar o bacalhau. Mas essa é uma escolha pessoal. Admitem-se entre cavalheiros de bom gosto os tintos frutados, sem taninos, que escoltam corretamente várias receitas com esse peixe, diz o mestre.

No entanto, perdoem se insisto. Para uma boa posta de bacalhau, preparada com simplicidade para ressaltar o seu sabor, não há dúvidas de que um branco encorpado é ótima opção.

Há alternativas para a fruição de bacalhau honesto e muito bem preparado em restaurantes de Curitiba. O do restaurante Durski é belo exemplo de posta generosa, da cocção em tempo exato e a vantagem de ali nos depararmos com a mais extensa e sofisticada carta de vinhos que esta cidade pode oferecer.

Outro bacalhau digno de visita é o do Hermes Custódio, no Vin Bistrô. Posta firme que nos é servida coberta com uma crosta de alho, montada sobre batatas de fundo. É soberbo. Este é outro lugar onde os vinhos de boa safra não faltam.

Assim também o bacalhau preparado pela Eva no Vitor do Park Shopping Barigui, onde se pode chegar sem passar pelo gazeio detestável da humanidade que visita shoppings. Bom vinho nos oferece o Chico Urban, mas essa é uma especialidade na qual não devemos avançar quando o mestre Zanoni está aqui por perto. E há o bacalhau, talvez o mais antigo de Curitiba, servido no tradicional Camponesa do Minho, especializado em culinária portuguesa. Ali, prove antes o bolinho de bacalhau. Melhor não há nesta área do planeta.


Depois do bacalhau e do bom vinho, que sendo branco pode ser um Chardonay, os vinhos de sobremesa. Um porto antigo, um Marsala, e charutos de boa espécie. Recomendo um belo cubano Hoyo de Monterrey, gran corona. Se houver disposição, então sim se pode abrir uma contenda de ideias e seguir no vinho pela vida afora.

No mais, conter o entusiasmo, para não fazer como Noé, depois do dilúvio, que plantou uma vinha, embebedou-se e ficou nu, para vergonha de seus filhos. E lembrar das filhas de Ló, que deram de beber vinho ao pai para deitar com ele, garantindo a perpetuação da espécie — pelo que somos gratos ao vinho.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Hermes ou a requintada arte do simples


Hermes Custódio comanda a cozinha que prepara alguns dos pratos mais cobiçados da cidade. Sua principal fonte de inspiração é Paul Bocuse. O mestre maior, seu iniciador, foi o Celso Freire. Deles aprendeu a nova gastronomia, essa que deixou mais leve e simples a cozinha francesa clássica e revolucionou a culinária no mundo.

Hermes Custódio usa ingredientes tradicionais, mas mudou a maneira de prepará-los. Sua preocupação é a de preservar o sabor dos alimentos. Por isso mesmo os seus molhos e temperos são suaves. Nem um grama a mais para não comprometer o sabor original.

Mas há criatividade nessa faina que o obriga diariamente a procurar o que há de melhor para servir. Quando pode, faz seus experimentos. Alguns levaram mais de ano para que chegassem ao ponto que ele pretendia. Prove o lombo de bacalhau com a crosta de alho ou o mignon acompanhado de arroz em molho de queijos. Peça um peixe, experimente os frutos do mar. Depois organize uma corrente de orações para manter o chef em atividade.

Hermes Custódio tem uma história que repete a dos meninos humildes do interior que procuraram na cidade grande um destino melhor.

Veio de Wenceslau Brás, cidade que parou no tempo e feneceu com a mudança de sua agricultura. Hoje, a população é menor do que na época que Hermes a deixou.

Em Curitiba, aos 15 anos, ele foi lavar pratos para sobreviver. Aí começou a mudar a sua sorte e a desenvolver uma vocação que ele acredita que tem origem anterior, na observação da cozinha doméstica, no preparo das caças e na educação paciente, mas rigorosa, que recebeu do avô.

Ainda menino, Hermes era escalado para o sacrifício das aves de caça que o avô trazia das incursões pela região. Trabalho a que levou muito tempo para se habituar e que fazia parte de sua formação para a idade adulta, como explicava o avô, que não queria um neto com temores e preguiças. O italiano era um convicto defensor do princípio do desempenho.

No restaurante Boulevard, passou da estiva de lavar a louça para a função de auxiliar de cozinha. Cortava os legumes segundo o pedido do chef Celso Freire. Foram anos de paciência e observação até que surgisse a oportunidade. Um subchefe pediu demissão. Freire lhe ofereceu a vaga. Ele aceitou.

Freire presenteou Hermes com um volumoso compêndio onde estavam as receitas que ele usava. Hermes agradeceu, olhou o livro e surpreso, observou:

― Mas este livro é em francês e eu não sou francês.

— Você pensa que a vida é fácil? Respondeu Freire.

O primeiro teste foi o da preparação dos molhos. Hermes comprou um dicionário, traduziu as receitas como podia, pendurou cartazes na cozinha com as palavras em francês e sua tradução. Assim aprendeu francês e a cozinhar.

No começo, Freire experimentava os molhos e os despejava no lixo. Um atrás do outro. Nada dizia. Meses depois, Freire aprovou o primeiro, o segundo e daí em diante deixou Hermes à vontade.

Desde então, nosso chef evoluiu à condição de um dos principais da cidade. Para encontrá-lo, em sua cozinha ampla, onde comanda uma equipe com rigor de general de brigada, visite o Vin Bistrô, na rua Fernando Simas, 260, Batel.